Solitária e comum...

...sob a companhia de janelas, armários, do som ao fundo, da paz dissimulada e sonsa, a mulher de pele negra e carne farta tenta respirar o ar daquele momento. Muitas vezes esse ar parece pútrido e pesado como de próposito para impedí-la de respirar e arracar dela o sopro de vida que ainda lhe restava. Tentou sair de casa algumas vezes, mas deu um passo atrás. Se deparou com as mesmas intolerâncias pessoais de sempre: mentes vazias, corações superficiais e maneiras levianas de tratar o mundo. Aquilo era insulportável naqueles tempos dela.

Dentro daquele silêncio sepulcral, conseguia até ouvir o sangue que corria naquele corpo preguiçoso cujo o único movimento que seus membros conseguiam fazer era o de coçar os olhos tentar aliviar o incômodo de uma anunciada conjuntivite... vez ou outra conseguia pensar no menino, naquele que a fazia enlouquecer vez sim outras não - mas a sua racionalidade a advertia que pensar no moleque era algo inúltil porque causava dor.

Então buscava na memória palavras de estímulo e revisitava lembranças tão antigas que nem mesmo sua boa memória era capaz de recordar com consciência. O esforço era resgatar aquela tal força interior que vez ou outra lhe escapulia entre os dedos. Aquilo se tornara uma constância. Ainda se pegava pensando nessa coisa de felicidade, ainda se enganava pensando na felicidade que ainda precisava conquistar... como se ela fosse algo temporal, espacial e circunstancial.

Naquele momento irritava o som do radinho de pilha do vizinho que tinha a locução infeliz de um jogo local... o nervoso era seu melhor e maior companheiro ultimamente. Não suportava mais o mundo exterior por simples prepotência e arrogância. "Acho que sou melhor que isso tudo", confabulava com seus botões, com seus óculos de aros grossos e sua mão no queixo. A superioridade mora ali... dentro dela. Uma arrogância incapaz de compreender o tamanho de sua estupidez. Que era grande o bastante aos olhos dos outros, mas invisível aos seus... reconhecer suas fraquezas de caráter era impossível para uma jovem senhora desprovida de humildade e modéstia.

Agora está em um processo de inércia e sua mão que coçava os olhos de conjuntivite, passa pelos cabelos desgrelhados sobre o travesseiro na tentativa de arrumá-los. Inúltil. Desiste logo no meio da primeira tentativa. "Me arrumar para quem?". A este ponto sua última gota de auto-estima cai e evapora no ar antes de alcançar o chão. Não tem ninguém na platéia querendo ver a melindrosa ex-dançarina de bordel que tenta esconder seu passado no ármario reservado às piores lembranças. Julgar a superficialidade das pessoas é uma forma se esconder dela mesma. Do lixo que ela diz ter sido.

Mas seus pensamentos não querem pensar. Ela procura um lugar para deixá-los presos, longe dessa coisa chamada liberdade que ela insiste em ter, mas não entende como se faz para ter e ser.

Ilustração: Leandro A. Carmo